sexta-feira, 22 de abril de 2016

autodisciplina

cérebro, mente & cultura

規律 kiritsu; 自粛 jishuku; 躾 shitsuke; 主要 shuyo



Yogues e samurais são dois ícones modernos do autocontrole e domínio que se fundamentam na disciplina, ou melhor, na autodisciplina, mas o que quer dizer exatamente esta palavra? ...e de que modo esta prática se institui na mente, cérebro ou cultura, permitindo tal domínio do si mesmo (self)? Para responder poderíamos nos remeter à origem das línguas uralo-altaicas e indo-européias diferenciando o japonês do sânscrito e da língua portuguesa, mas a resposta também está numa possível definição de mente entrevista nos domínios da neuroantropologia, o que esta breve comparação de padrões culturais tenta fazer.

Sabe-se por dicionários a disciplina como o regime ou ordem imposta ou livremente consentida, o que convém ao funcionamento regular da organização dos hábitos ou das instituições (militar, escolar, etc.). É possível inclusive que as relações de subordinação do aluno ao mestre ou ao instrutor para aprender determinado oficio ou conjunto de informações, posteriormente derivaram as designações de ramos específicos do conhecimento ou “cadeiras” dos estabelecimentos de ensino.

Comparando este termo latino disciplina que por sua vez, tem origem no latim discere (aprender), com as línguas orientais encontra-se uma semelhança de significado com o ideograma 躾 shitsuke, que corresponde á educação, treino, e/ou podemos identificar uma equivalência com a expressão 自粛 jishuku - autodisciplina (limitação, controle). Contudo fica nítida a diferença quando encontramos ainda este significado nos ideogramas que também designam 規律 kiritsu - lei - (disciplina) e 主要 shuyo (disciplina) – característica essencial / primordial (main). Este último traduzido por Ruth Benedict (1887-1948), em sua clássica análise da cultura japonesa como: “o poder de viver plenamente e alcançar o gosto da vida”. Os conceitos japoneses de autodisciplina, segundo ela, podem ser divididos esquematicamente naqueles que conferem competência e naqueles que conferem algo mais, o além da “competência”, a “perícia” (shuyo) da plenitude da vida e perfeição.

Quanto a comparação com a yoga na Índia, onde originalmente era uma prática ascética e/ou um culto à maneira de alcançar a libertação do ciclo da reencarnação e comunhão com a divindade, Feuerstein assinala, que a yoga integrava o conjunto de práticas de autodomínio niyama, mais especificamente da restrição e resistência ou tapas.

Assim refere-se Benedict (1946) as semelhanças e diferenças da autodisciplina indiana e japonesa:

Muitas civilizações aperfeiçoaram técnicas desse gênero, porém, os objetivos e os métodos japoneses possuem um caráter marcante todo seu, o que vem a ser especialmente interessante, pois grande número daquelas provém da Índia, onde são conhecidas como ioga. As técnicas japonesas de auto-hipnotismo, concentração e controle dos sentidos revelam ainda parentesco com práticas indianas. Verifica-se uma ênfase similar no esvaziamento da mente, na imobilidade do corpo, em dez mil repetições da mesma frase, na fixação da atenção num símbolo escolhido. Até mesmo a terminologia utilizada na Índia é ainda reconhecível. Além desse visível arcabouço do culto, no entanto, a versão japonesa pouco tem em comum com a hindu. ... Benedict (1946) o.c. p.200

Benedict (1946) observa também que apesar do Japão ser uma grande nação budista os objetivos da meditação e iluminação (悟り satori) é o aperfeiçoamento imediato “aqui e agora” sem outro poder além do humano seja ele um esgrimista, estadista ou estudante, ao contrário do nirvana ou sâmadhi indiano uma realidade intocada pelo espaço-tempo (Feuerstein), sem a qual o homem não tem salvação. (Benedict, 1946)

sâmadhi, satori, nirvana



Para Eliade, analisando as técnicas do yoga a partir dos escritos de Patañjali, o ponto de partida da meditação é a concentração e a perfeição desta requer diversas etapas ou “técnicas” auxiliares que são os refreamentos (yama) e disciplinas (niyama), preliminares inevitáveis a qualquer ascese e principalmente para se obter o samâdhi ou libertação definitiva. Os refreamentos (yamas) constituem-se como um código de ética (não matar; não roubar; não mentir; dominar o desejo sexual e a avareza). As disciplinas (niyamas) por sua vez constituem-se como técnicas propriamente ditas (higiene, renuncia ou ascese, estudo, esforço para fazer de Deus o motivo de todas as ações).

Parafraseando ainda Benedict, não há quem veja o mundo sem o espírito condicionado por um conjunto definido de costumes, instituições e modos de pensar (1934) e as autodisciplinas de uma cultura têm sempre possibilidade de parecerem irrelevâncias aos observadores de outro país (1946).

Contudo apesar do paradoxo enunciado por Geertz sobre o panorama de um mundo cada vez mais global (completamente interligado) e mais dividido (intrincadamente compartimentalizado) – o cosmopolitismo e o provincianismo já não se opõem; ligam-se e se reforçam e cabe ao antropólogo combater o racismo e amenizar conflitos promovendo o entendimento entre os povos. Benedict (1934), a propósito da integração de culturas nos propõe ser este um processo análogo ao modo como se formam e persistem os estilos de arte.

No estudo e domínio da autodisciplina poderemos obter o equivalente a uma arte única e homogênea, rejeitar alguns elementos modificar, inventar e acrescentar outros, tal e qual os estilos de arte?

Numa perspectiva ocidental pode se deduzir que foi este o caminho da integração da disciplina nas artes marciais orientais nas academias ocidentais ou do yoga nas praticas de educação física ou medicinas integrativas e complementares no ocidente. Integrou-se também a psicologia, onde a autodisciplina inclui: o automonitoramento para mudança de estilo de vida e construção de hábitos saudáveis; técnicas de autoregulação (respiração diafragmática, relaxamento progressivo etc.) para autocontrole da dor na linha teórica das "terapias cognitivo-comportamentais" - TCC (Wright et al.; Wedding, Stuber). Nesta proposição da TCC comportamentos e crenças disfuncionais correspondem ao autocontrole/autodisciplina insuficientes. (Petroff)

Voltando à perspectiva de interpretação antropológica, é também clássica a proposição de Marcel Mauss de interpretação da relação entre as culturas ou o modo como os homens e as sociedades sabem servir-se do corpo, descrevendo e classificando as técnicas corporais. O desafio, nessa perspectiva, seria então aproximar o entendimento das técnicas do sono e vigília ou “sistema de montagens simbólicas” que delimitam as atividades da consciência segundo Rivers e Head (Mauss o.c. p.408)

A moderna antropologia, especialmente a antropologia médica ou etnomedicina também nos oferece inúmeros exemplos, em especial, do que tem se convencionado chamar de neuroantropologia, o campo interdisciplinar da antropologia / neurociência. As pesquisas do nexo entre o cérebro e a cultura têm evoluído graças ao avanço tecnológico e o desenvolvimento de métodos observacionais e experimentais associados à ressonância magnética funcional, eletroencefalografia, em conjunto com técnicas de manipulação e de interferência, tais como estudos de lesões e estimulação elétrica. (Domínguez et al.)

Observe-se porém, como ressalva Geertz em sua análise sobre a cultura, mente, cérebro ou cérebro mente, cultura:

...a evolução coetânea do corpo e da cultura, o caráter funcionalmente incompleto do sistema nervoso humano, o fato de o sentido ser um componente do pensamento e de o pensamento ser um componente da prática - sugere que o caminho para uma melhor compreensão do biológico do psicológico e do sociocultural não passa pela disposição deles numa espécie de hierarquia da cadeia do ser, estendendo-se do físico e do biológico até o social e o semiótico, com cada nível emergindo e dependendo do que lhe está mais abaixo (e, com sorte, sendo redutível a ele). Tampouco passa por tratá-los como realidades descontínuas e soberanas, como campos fechados e isolados, externamente ligados uns aos outros ("numa interface" uns com os outros, como diz o jargão) através de forças, fatores, quantidades e causas vagos e acidentais.Constituindo uns aos outros e reciprocamente construtivos, eles devem ser tratados como tais - como complementos, não níveis; como aspectos, não entidades; como paisagens, não domínios. Geertz o.c. p.181

Para concluir podemos dizer que a autodisciplina dos samurais (peritos em arte marcial do Japão dos sec. X ao XIX) e yogues ascetas hindus é um resultado das suas respectivas concepções – traduzíveis inclusive em seus respectivos códigos de ética (o bushido (武士道) ou como vimos nos yama expressos, por exemplo, nos aforismos de Patanjali (200 a.C. - 400 d.C.) que dirigem e reforçam as respectivas práticas. Tais códigos e concepções não podem, no entanto ser reduzidos ao "nível" semiótico – psicológico ignorando-se os valores culturais que possivelmente lhe deram origem.

Por outro lado e como diz Geertz (o.c.) “o cérebro não está em um tonel e sim no corpo e não se pode dizer que a autodisciplina obtida, é um resultado independente da neurofisiologia e aprendizado do satori, nirvana ou sâmadhi enquanto níveis de consciência ou formas de organização cerebral que permitem o domínio das funções corporais. Simultaneamente sendo também um aspecto do desenvolvimento individual cognitivo-emocional e/ou da comunicação social e comportamento coletivo.

Bibliografia

BENEDICT, Ruth. (1946) O crisântemo e a espada. SP: Perspectiva, 2014

BENEDICT, Ruth. (1934) Padrões de Cultura. Lisboa: Editora Livros do Brasil

FEUERSTEIN, Georg. A tradição do yoga. SP: Ed. Pensamento, 2006

DOMINGUEZ, Duque JF; TURNER, R; LEWIS ED; EGAN G. Neuroanthropology: a humanistic science for the study of the culture–brain nexus. Social Cognitive and Affective Neuroscience. 2010;5(2-3):138-147. doi:10.1093/scan/nsp024.

ELIADE, Mircéa. Patañjali e o yoga. Liboa: Relógio D’Água, 2000

GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. RJ: Zahar,2001

MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo (1934) in: MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. SP: Cosac Naif, 2003

PETROFF, Thaís. Entenda os comportamentos disfuncionais (Parte II) Portal Vya Estelar. http://www2.uol.com.br/vyaestelar/comportamentos_disfuncionais01.htm aces. abr. 2016

TANGORIN English ⇆ Japanese dictionary http://tangorin.com/ aces. abr. 2016

WEDDING, Danny; STUBER, Margaret L.. (org.) Medicina Comportamental. SP: Manole, 2014

WRIGHT, Jesse H. ... [et al.]. Terapia Cognitivo-comportamental de Alto Rendimento Para Sessões Breves. Porto Alegre: Artmed, 2012

Ilustração: Wikimedia Commons